Dólar na cotação mais baixa em mais de um ano, juros futuros caindo, bolsa no topo de 2023, crescimento econômico surpreendendo analistas e desemprego em baixa.
Os números da economia do Brasil até agora em 2023 são muito diferentes do que analistas dos grandes bancos e corretoras esperavam. No final do ano passado, havia um sentimento de incerteza sobre a economia brasileira — tanto devido a incógnitas sobre o cenário global quanto por dúvidas que analistas de mercado tinham sobre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A BBC News Brasil conversou com economistas de alguns dos principais bancos e corretoras do Brasil para fazer um balanço sobre esse começo de ano agitado na economia e na política brasileira.
Em poucos meses, o governo Lula abandonou o teto de gastos (regra fiscal adotada durante o governo de Michel Temer em 2016 para conter o aumento da dívida pública) e começou a aprovar no Congresso a sua própria regra fiscal - conhecida como arcabouço fiscal. O primeiro semestre também foi marcado por uma nova política de preços para a Petrobras e por fortes críticas de Lula aos juros estabelecidos pelo Banco Central.
No exterior, mercados oscilaram bastante sem saber se a crise inflacionária mundial está sob controle ou não.
Os analistas ouvidos pela BBC News Brasil indicam que no início do ano houve um certo “pessimismo exagerado” do mercado com as perspectivas da economia brasileira sob um novo governo Lula. Mas muitos se disseram surpreendidos positivamente — principalmente pelo arcabouço fiscal.
“Eu acho que houve um pessimismo um pouco exagerado [do mercado] no começo do ano. Mas agora nós estamos vendo que a situação não é tão ruim assim", diz Rafaela Vitória, economista-chefe do Banco Inter.
Ainda que analistas enxerguem a regra do arcabouço fiscal de Lula como menos eficiente do que a regra anterior que foi extinta pelo Congresso (o teto de gastos), há um consenso de que existe um lado bom no arcabouço de Lula: a nova regra tem gatilhos para impedir a explosão de gastos e da dívida pública brasileira — elementos que são vistos hoje como essenciais para o crescimento da economia.
Mas mesmo diante de um cenário melhor do que o previsto inicialmente, os analistas seguem céticos diante das perspectivas futuras da economia brasileira a partir de agora.
Por um lado, o Brasil pode aproveitar ventos bons nos próximos meses, com as perspectivas de queda nas taxas de juros internas, possível desvalorização internacional do dólar e retomada do aquecimento.
A maioria dos analistas acredita que o Banco Central brasileiro começará a baixar a taxa básica de juros da economia a partir de agosto ou setembro — antes dos bancos centrais das maiores economias do mundo.
Por outro, há muitas incertezas dos analistas sobretudo na política econômica do governo. Muitos definem o novo arcabouço fiscal do governo federal como “ousado” — dizendo que é incerto que a nova regra vai melhorar as contas públicas, e que seu sucesso dependerá, em última instância, da atividade econômica.
Também há incertezas em relação ao futuro da reforma tributária, que promete ser a grande agenda do governo Lula no Congresso a partir do próximo mês.
Por fim, existe o temor de ventos ruins do exterior — os Estados Unidos podem entrar em recessão e os juros e a inflação nos países industrializados seguem em alta. Uma crise no exterior poderia impactar o crescimento do Brasil.
Dívida alta
Para analistas de mercado, o principal problema histórico da economia do país tem sido a alta dívida pública brasileira.
O alto endividamento levanta dúvidas sobre a capacidade futura de o governo honrar seus compromissos — e isso tem consequências para todo o ambiente econômico: as taxas de juros sobem (por conta dos riscos maiores nos empréstimos) e a expectativa de inflação dispara (já que a forma mais fácil de o governo honrar suas dívidas seria expandindo a quantidade de moeda na economia, o que gera inflação).
Como consequência, o ambiente econômico fica comprometido — deprimindo crescimento, renda e emprego.
O endividamento do PIB brasileiro está hoje em 73% do Produto Interno Bruto, mas economistas estão sempre discutindo se esse percentual pode subir por causa de medidas tomadas pelo governo.
Por isso, tanta ênfase é dada para a arrecadação com impostos e despesas com gastos do governo — nos anos em que o governo tem arrecadação maior do que as suas despesas (superávit fiscal), a trajetória da dívida brasileira cai.
Em 2016, o Brasil aprovou a PEC (Projeto de Emenda Constitucional) do Teto de Gastos, que limitava o gasto do governo à sua arrecadação, mantendo a dívida sob controle em praticamente qualquer cenário (seja de crescimento ou de contração da economia).
Nos últimos anos, no entanto, o teto foi “furado” em diversas ocasiões. Inicialmente isso aconteceu por causa da criação dos gastos com a pandemia de coronavírus — sobretudo com o Auxílio Brasil, criado em dezembro de 2021, durante o governo Jair Bolsonaro (PL), por meio de uma lei que extinguiu o antigo programa Bolsa Família.
Mas mesmo depois do período mais crônico da pandemia, o Brasil continuou gastando mais — primeiro com a chamada PEC dos Benefícios de julho de 2022 (também chamada de PEC Kamikaze), que criou um estado de emergência no Brasil até o fim de 2022, e depois com a PEC da Transição, de dezembro de 2022, que permitiu gastos acima da inflação com Bolsa Família e salário-mínimo.
Com déficits maiores, a trajetória da dívida brasileira voltou a subir, provocando pessimismo geral no mercado no final de 2022.
Início de governo tumultuado
O ano de 2023 começou com muitas dúvidas sobre como o novo governo lidaria com o problema fiscal.
Durante a campanha eleitoral e a transição de governo, Lula havia prometido acabar com o teto de gastos do orçamento do governo e reverter aspectos da reforma trabalhista — mas ele havia dado poucas pistas sobre qual seria a política econômica que ele implementaria no lugar.
Lula foi eleito com fortes críticas às políticas econômicas de seus antecessores. Para o presidente, o teto de gastos é uma política que impede o Estado brasileiro de investir e isso acaba por prejudicar os mais necessitados.
“O ponto mais marcante para mim nesse primeiro semestre foi o ruído político", diz Raphael Figueredo, estrategista-chefe da Eleven Financial.
"A gente começou a virada do ano acreditando que a taxa Selic ia cair. Mas logo em janeiro, quando houve a fala do Lula no Congresso, quando ele critica o teto de gastos, essas projeções de taxa de juros subiram bastante e só caíram de novo agora no fim do mês passado.”
As repetidas críticas de Lula ao presidente do Banco Central por causa dos juros e a ausência de um plano econômico nos primeiros meses para substituir o teto de gastos contribuíram para o pessimismo do mercado no começo do ano.
“No início do governo, só havia promessas de gasto e mais gasto. Nós não conseguíamos nem fazer as nossas contas — como projeção de PIB ou de inflação. Nós não sabíamos qual seria a política fiscal e demorou um tempo para vir o arcabouço”, disse Caio Megale, economista-chefe da XP, que foi secretário de Desenvolvimento da Indústria e Comércio e Diretor de Programas no Ministério da Economia em 2019 e 2020.
Em abril, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou sua meta fiscal: zerar o déficit das contas públicas até 2024. Ou seja, a partir do ano que vem, o governo gastaria apenas o que arrecada (sem contar o pagamento de juros sobre a dívida).
Arcabouço 'pior', mas positivo
O principal anúncio feito pelo governo este ano foi a apresentação da sua nova regra fiscal, o arcabouço fiscal, em abril. O projeto está tramitando no Congresso e foi aprovado em primeira instância na Câmara dos Deputados.
Segundo a proposta do governo federal, no lugar do teto de gastos — que limitava o crescimento das despesas à inflação do ano anterior —, os gastos públicos passariam a crescer dentro de um intervalo de 0,6% a 2,5% acima da inflação, a depender do ritmo de expansão das receitas.
O governo argumenta que seu arcabouço fiscal é melhor para a economia brasileira do que o teto de gastos, por manter o compromisso de combater o endividamento, mas dando às autoridades mais recursos para promover investimentos públicos.
Todos os analistas de mercado ouvidos pela BBC News Brasil avaliaram que o arcabouço fiscal é pior do que a regra do teto para conter o endividamento público — mas afirmaram que, ainda assim, diante do que esperavam do governo Lula, a proposta foi positiva.
O temor é que, ao contrário do teto de gastos, o sucesso do arcabouço fiscal no combate à dívida depende demais da performance da economia brasileira — e que uma combinação de preços baixos de commodities e atividade fraca podem seguir gerando déficits fiscais.
Claudio Ferraz, economista-chefe de Brasil do BTG Pactual, diz que o projeto do arcabouço fiscal foi aprimorado nas discussões no Congresso e que o mercado está aguardando para entender qual vai ser a versão do arcabouço que vai prevalecer no final.
“Houve uma aprovação por uma larga vantagem na Câmara, o que impressionou”, diz Ferraz.
Ele diz que entre as propostas que agradaram o mercado estão os gatilhos que obrigam contingenciamento de gastos quando as metas fiscais do governo estiverem em risco, vedação de criação de novos gastos obrigatórios e congelamento de reajustes de funcionários públicos.
Mas mesmo que a versão que mais agrada o mercado seja aprovada, Ferraz e os economistas do BTG Pactual não acreditam que o governo será capaz de atingir a meta de acabar com o rombo fiscal ainda em 2024, porque a arrecadação ainda não está acompanhando as despesas.
O determinante para o sucesso do arcabouço fiscal na redução da dívida brasileira, segundo Ferraz, seria a capacidade do governo de combater lobbies setoriais – que sempre brigam por benefícios fiscais – e o desempenho da economia no segundo semestre.
Se houver desaceleração da economia, concessão de mais subsídios e queda no preço internacional das commodities, o arcabouço fiscal não seria suficiente para sanear as contas públicas.
"Por outro lado, se a economia se mostra mais resiliente, as commodities sobem e o governo entrega a sua parte, você tem um lado positivo. Então eu acho que vamos ter que monitorar a evolução da arrecadação daqui para frente para saber."
Juros altos
Mas então, se existe tanta incerteza em relação ao arcabouço fiscal, por que a inflação no Brasil está em queda?
“Porque a taxa de juros hoje é de quase 14%, muito, muito, muito superior a qualquer expectativa de taxa de inflação. Podemos imaginar que a inflação esse ano será de 5% ou 6%”, explica Dalton Gardimam, economista-chefe da Ágora.
O economista diz que a taxa de juros no Brasil funciona como se fosse um analgésico em um paciente com uma doença — o medicamento não serve para curar o problema principal de saúde (no caso do Brasil, o alto nível da dívida e o déficit fiscal), mas mitiga os sintomas e efeitos, trazendo bem-estar e alívio temporários.
No caso dos juros, eles servem para manter a inflação baixa e para apreciar o câmbio — o que contribui para as quedas do dólar e dos juros que surpreenderam positivamente no Brasil em 2023. Com a taxa tão alta, brasileiros deixam de enviar recursos ao exterior e investidores estrangeiros são premiados ao colocar dinheiro no Brasil.
Gardimam diz que mesmo reduzindo a dose do “analgésico” no futuro — ou seja, com a queda da taxa Selic que está prevista para o segundo semestre desse ano — o Brasil seguiria com juros muito acima da média mundial e da inflação prevista.
No entanto, segundo o economista-chefe da Ágora, um dos problemas fundamentais da economia seguiria existindo: o déficit fiscal que faz a dívida brasileira aumentar. Esse problema o governo espera resolver com o arcabouço fiscal.
Reformas
Outro problema histórico da economia brasileira que Gardimam aponta — e que na sua opinião é mais grave do que o da dívida — é a baixa produtividade, algo que só pode ser resolvido com soluções de longo prazo, como investimentos contínuos em educação e reformas de base.
Nesse sentido, o mercado está de olho nos planos do governo de promover uma reforma tributária no segundo semestre deste ano.
Para Rafaela Vitória, do Banco Inter, alguns bons números da economia brasileira de hoje se explicam justamente porque o país fez diversas reformas nos últimos anos.
“Nós ainda não conseguimos avaliar o impacto positivo que essas várias reformas feitas nos últimos seis anos tiveram na economia brasileira. Desde 2016, essas reformas têm trazido benefícios, como a reforma da Previdência — que conseguiu controlar o crescimento real de gastos que era insustentável — e a reforma trabalhista — que fez com que tivessemos uma flexibilização maior e melhorasse o cenário de emprego e renda.”
Vitória considera que esse conjunto de reformas ajuda na geração de empregos e atração de investimentos internacionais – dois indicadores que também foram positivos em 2023 até agora.
Figueredo, da Eleven Financial, diz que a reforma tributária é “importantíssima”.
“Eu não acho que seja simples a aprovação de uma reforma tributária, mas ela está avançando no Congresso e o governo chamou a reforma para si. Mesmo que venha uma reforma desidratada, ainda assim ela vai ajudar demais no crescimento de longo prazo”, diz Figueredo.
A reforma discutida até agora no Congresso não traz alterações na carga tributária — ou seja, ao contrário do arcabouço fiscal, ela não alteraria substancialmente as metas fiscais. O objetivo da reforma é simplificar os impostos cobrados no Brasil e reduzir o custo que as empresas têm para se manter em dia.
O complicado sistema tributário é um dos fatores do chamado "custo Brasil".
“Há dezenas de relatos de empresas que têm só um advogado tributarista lá nos Estados Unidos e aqui no Brasil elas precisam ter centenas só para o ato de pagar impostos”, diz Dalton Gardimam, do Ágora.
Mas os analistas esperam dificuldades no Congresso.
O desafio da reforma tributária será convencer Estados — sobretudo governadores — a abrirem mão de tributos usados hoje em dia em guerras fiscais. Para Figueredo, o governo precisará gastar bastante capital político para conseguir aprovar a reforma.
Futuro incerto
Se os indicadores até agora surpreenderam economistas de mercado de forma positiva, o futuro é um pouco mais nebuloso.
No começo do mês, o IBGE anunciou que o PIB brasileiro cresceu 1,9% - acima das previsões de analistas.
No entanto, esse número foi puxado pelo ótimo desempenho da agricultura (que teve expansão de 21,6%), que se beneficiou de uma boa safra e de uma alta no preço das commodities. Os setores de serviços e indústria permaneceram relativamente estagnados, despertando dúvidas sobre a robustez do crescimento do Brasil nos próximos meses.
Caio Megale, da XP, acredita que os bons indicadores atuais da economia — bolsa, câmbio, inflação e juros — são justificados porque, segundo ele, "os preços dos ativos brasileiros estavam muito deprimidos por conta do risco de radicalização" da política econômica do novo governo, que não se confirmou com o tempo.
Mas isso não significa que os problemas da economia brasileira tenham passado.
"No curto prazo, nós temos um alívio, uma melhora, porque existe essa desanuviada do risco. Agora, ao longo do tempo, eu acho que com essa dinâmica de mais gastos, necessidade de buscar mais receita, incerteza sobre o equilíbrio da dívida pública — isso não se estabiliza daqui para frente. Também há incerteza se teremos de volta uma gestão mais politizada na Petrobras e no BNDES. Acho que esses temas todos ainda estão em aberto. Na nossa visão, isso limita o espaço de corte de juros e de recuperação da economia.”
“Nós não acreditamos que a Selic possa cair para um dígito de forma sustentável, com essa política fiscal que tem um viés de aumentar as despesas e de eventualmente aumentar subsídios. Acho que esse risco ainda está presente.”
Um dos testes mais importantes deve acontecer no próximo dia 29, quando o Conselho Monetário Nacional (CMN) definirá se haverá mudanças na meta de inflação perseguida pelo Banco Central.
Os analistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o mercado estará de olho nas decisões tomadas pelo CMN para poder avaliar se as autoridades estão comprometidas com manter a inflação em trajetória de queda.
Fonte: BBC
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