O caso que para muitos pode ser um milagre, para outros é um acontecimento normal, e não por isso simples, da vida na selva.
Quatro crianças indígenas do sudeste da Colômbia passaram 40 dias perdidas em uma das regiões menos exploradas, mais densas e selvagens do mundo.
No dia 1º de maio, jovens de 14, 9, 4 e um ano sobreviveram à queda do avião de pequeno porte em que viajavam com a mãe e outros dois adultos que morreram.
Na sexta-feira (9/6), eles foram encontrados pelo exército após uma intensa busca. No sábado foram transferidos para Bogotá e agora recebem tratamento no Hospital Militar.
Mais do que perdidas, diz ele, as crianças estavam em seu ambiente, sob os cuidados da selva e da sabedoria de anos de populações indígenas em contato com a natureza.
O fotógrafo e professor universitário afirma que as crianças estiveram vulneráveis durante esses 40 dias: o alimento é escasso e a relação com os animais pode ser tão complementar como fatal.
Mas eles também estavam em sintonia com a natureza, diz ele. "Protegido pela Selva"
Logo após dar uma aula para crianças sobre a Amazônia, Rufino conversou por telefone neste sábado com a BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) sobre a forma como enxerga esse caso.
Como as crianças conseguiram sobreviver na selva?
Alex Rufino - As crianças intuitivamente aprendem muito com seus pais. Quando vão caçar, para colher frutas. Sua observação é essencial. Eles estão aprendendo o que pode ser útil para eles e o que não é.
Às vezes, eles ficam doentes por tentarem coisas que não deveriam, mas é aí que estão os irmãos mais velhos, ajudando-os a descobrir o que é prejudicial.
Cada árvore, cada planta, cada animal indica onde estamos, o que está disponível e quais são as ameaças. E as crianças sabem interpretar isso.
Além do aprendizado, eles se ajudam com os animais. Por exemplo, os macacos, que por se alimentarem de maneira semelhante a nós, com muitas frutas doces, servem de guia. Há uma convivência entre nós e eles, que, por estarem nas árvores, jogam comida no chão. O desafio é se adaptar ao seu movimento, que é rápido.
Não se trata de imitá-los, mas de seguir e observar seus passos para encontrar comida. A quebra de um galho, por exemplo, é uma indicação do caminho a seguir. Seu som e seu passo dão alertas dos animais (de onça, de jibóia).
Nessa relação com o macaco podemos nos camuflar e nos proteger.
Os militares disseram que parte da dificuldade em encontrá-las era que as crianças estavam em movimento. Por que elas fizeram isso?
Porque quem está na selva não pode ficar parado. Por instinto, você se move.
Porque na selva não esperamos sair, mas sim encontrar comida e coisas que nos permitam passar melhor a noite.
Como você descreveria a selva em que eles estavam?
Rufino - É uma selva muito escura, muito densa, onde estão as maiores árvores da região. É uma área que não foi explorada. As populações são pequenas e ficam próximas ao rio, não na selva.
Há frio, insetos, umidade.
É perigoso, porque é o corredor da onça, da sucuri, da cobra verrugosa, uma das maiores cobras venenosas da América.
Mas não vemos isso pelo medo ou perigo, mas pelo respeito. Cada centímetro da selva tem uma espiritualidade que você não pode invadir. Qualquer movimento implica um diálogo com o xamã, com o espaço. Caso contrário, isso pode afetar sua saúde ou segurança.
Cada coisa, cada árvore, é um ser que pode ensinar, um elo que pode dar remédio e comida e água em troca. Por exemplo, as árvores têm a função de proteger enquanto você dorme: elas são o grande ancestral, o grande protetor. Elas te dão abrigo, elas te abraçam.
Que técnicas as crianças podem ter usado para sobreviver na selva?
Rufino - Certamente encontraram muitas folhas úmidas e pequenos riachos, que não são necessariamente potáveis.
Mas há folhas que purificam a água, mas outras que são venenosas. Você tem que pegá-las de uma certa maneira, lavá-las de uma certa maneira e depois de um tempo usá-las para coletar água.
Também podem usar técnicas para limpar o corpo com folhas que servem para que mosquitos ou insetos não ataquem com tanta força.
Certamente, as crianças encontraram um pequeno arbusto que permite limpar os pés para evitar que as cobras as vissem ou as mordessem. Nessa idade, 14 anos, você já tem esse tipo de sabedoria clara.
Eles podem ter comido algum tipo de minhoca. Desde uma formiga até um pássaro é comida. O que a onça deixa para trás é outra opção.
E, acima de tudo, acho que comiam frutas, como algumas sementes vermelhas e doces que abundam nesta época. Isso ajuda a não desidratar e dá energia. Há também pós que servem da mesma forma, como um substituto que dá calorias, que aquece o corpo.
Na selva você não percebe que está perdendo peso: sempre tem a ideia de que está bem. Somente quando você conhece pessoas de fora é que percebe que era vulnerável. Você nunca pensa que vai morrer: você se concentra em seguir em frente.
Quão comum é um grupo de indígenas estar nessa situação na selva?
Rufino - É comum, sim, até a cada 10 dias em média um certo número de pessoas ficarem à deriva, porque vão à procura de frutas ou caça.
Não é que eles se percam, porque estão em seu ambiente, mas estão à deriva, sem saber quando vão voltar ao seu abrigo. E isso é porque você não conhece o caminho, ou porque os donos daquele espaço, os espíritos da selva, decidiram que não é hora de voltar.
E essa é a perda mais complexa, porque se você for retirado à força da selva, os espíritos podem aparecer de outras formas. Sua vida e sua saída dependem da instância do processo que você está vivendo com a selva. Sair nem sempre é a coisa certa a fazer.
Se essas crianças se perderam porque os espíritos as quiseram, e não passaram por um processo com o xamã, e se não recebem o tratamento que sua cultura exige, ainda correm perigo.
O que você acha da narrativa segundo a qual isso foi um milagre?
Rufino - Os territórios indígenas sempre foram vistos com uma narrativa herdada da conquista, da religião católica, porém não falamos de milagres, mas da ligação espiritual com a natureza.
É a palavra que vende, mas eu falaria mais do abraço da mãe que é a selva, da mãe que cuida de você.
É difícil entender isso, eu sei, mas é uma boa oportunidade para a sociedade, o ser humano, conhecer as diferentes visões de mundo que existem nos territórios.
Mais que um milagre, é preciso entender que na selva existem seres que protegem, que acompanham. A selva não é só verde, mas também energias milenares com as quais as populações se relacionam, aprendem e se ajudam.
As crianças nunca esquecerão o aprendizado desses 40 dias. Eles são a face visível do que é ser criança na selva. Sem a queda do avião, ninguém olharia para como as crianças vivem na selva, como se relacionam com ela, como morrem ou sobrevivem dependendo do processo que estão vivenciando.
A mesma mãe, que virou espírito após o acidente, os protegeu. E só agora vai começar a descansar.
E o que você acha da ideia de que as crianças estavam desaparecidas?
Rufino - Bem, elas estavam perdidas no sentido de que não encontraram seu lugar, onde está sua família. Mas não, as crianças estavam perdidas, porque estavam em seu ambiente, que conhecem e sabem conduzir.
Falar que elas estavam perdidas é supor erroneamente que estavam em uma selva descuidada, em uma suposta tragédia, mas para nós não é assim: elas estavam em seu ambiente, em seu lugar.
Por exemplo, a chuva: você pode pensar que isso os afeta, mas na realidade os protege, os banha, os limpa. E ainda: a chuva impede de encontrá-los, porque encontrá-los é, de alguma forma, quebrar o curso natural da selva.
Você acha que na leitura de todo esse caso há uma certa incompreensão sobre os indígenas?
Rufino - Completamente. Desde a própria narrativa do milagre, a ignorância é evidente. Porque além do imediatismo, você tem que entender como o território funciona. Os próprios avós falaram dos duendes que poderiam ajudar.
Fala-se mais do exército, das instituições, dos heróis que supostamente os salvaram. Mas, na realidade, para nós, a selva não era a ameaça: foi a própria selva que os salvou.
Desejo que as crianças tenham a dignidade que merecem, o respeito pelo seu território e pela sua cultura. Este é um território muito atingido por grupos armados, mineração, etc., e esperamos que essas crianças estejam bem.
Não devemos pressioná-las a nos contar o que aconteceu com elas.
Você acredita que as crianças ainda seguem em perigo?
Rufino - Claro. Além do mais, acho que elas correm mais perigo agora do que quando estavam na selva. Porque estão de fora, por causa da mídia, por causa do próprio olhar da sociedade que julga, que fala de milagres, que os pressiona a ser algo que não são, a receber tratamentos que talvez não precisem.
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